Ex-chefe da Comissão de Arbitragem da CBF, Wilson Seneme diz que árbitros ganham mal e são carentes

20 de setembro de 2025 Off Por admin1

Ex-chefe da Comissão de Arbitragem da CBF, Wilson Seneme diz que árbitros ganham mal e são carentes

Abre Aspas: Seneme diz que árbitros ganham mal e são carentes e afirma: “Sistema é falido”

Wilson Luiz Seneme tinha como grande sonho fazer sucesso no futebol. Durante quase uma década, a carreira como jogador pouco lhe trouxe de retorno financeiro e convicção de que poderia sobreviver fazendo o que mais amava.

Depois de atuar na base do Guarani, passar pelo União São João na mesma época do ex-lateral Roberto Carlos e rodar por outros times de menor expressão no interior de São Paulo e do Paraná, Seneme desistiu da carreira aos 25 anos para se dedicar à profissão de educador físico.

A arbitragem surgiu aos fins de semana como uma forma de complementar a renda e seguir ligado ao futebol. Foi a partir desse momento que a vida dele mudou totalmente.

Após quase duas décadas como um dos principais árbitros do futebol brasileiro e sul-americano e ostentar o escudo da Fifa, Wilson Seneme passou a atuar como gestor na Conmebol, sendo consultor da Fifa e mais recentemente como o chefe da Comissão de Arbitragem da CBF, de onde foi demitido em fevereiro deste ano. A saída, até agora, não foi digerida.

– Sou extremamente frustrado de ter sido interrompido na metade de um processo. Eu recebi a palavra de que seria apoiado. Estava empregado na Conmebol, o meu destaque na Conmebol foi que despertou o interesse de me convidarem para vir para a CBF. E apresentei o meu projeto, apresentei as condições e não sabia, e aí eu aprendi, que tem que assinar. Agora eu aprendi, porque esperava que a palavra servisse, ser interrompido nesse meio do caminho foi algo frustrante, decepcionante.

– Estou trabalhando para tentar ainda assimilar essa situação. Acredito que a arbitragem tem que ser democratizada, não dá para uma instituição querer que todo mundo conheça os critérios da arbitragem. Ela precisa de ajuda, precisa de instituições privadas que possam auxiliar seriamente a propagar e divulgar a interpretação das regras do jogo – disse.

Abre Aspas: Ex-chefe de arbitragem analisa árbitro de vídeo no Brasil: “É bom”

Responsável pela implementação do árbitro de vídeo no futebol sul-americano, Seneme defende a ferramenta das críticas. Ele afirma que os profissionais do Brasil não devem nada, por exemplo, aos da Premier League e que a tecnologia chegou para mudar a forma como os árbitros se comportam em campo.

– Eu acho que ele (VAR) é bom, não é ruim. Se a gente parar para analisar, a quantidade de benefícios é muito maior do que dos prejuízos. Se você for na Premier League e perguntar se o VAR da Inglaterra é bom ou ruim, a grande maioria vai falar que é ruim, porque eles não sabem o critério que o VAR tem. Então esse é um desafio grande, a gente melhorar esse entendimento da hora certa de um árbitro de vídeo participar. Isso é bastante difícil, é um grande desafio para todos.

– Acredito que o caminho está correto, que a tecnologia do impedimento semiautomático vai ajudar quando implementado no futebol brasileiro, vai dar mais credibilidade. Mas acredito também que só se fala do VAR porque os árbitros de campo no Brasil não estão sendo eficientes como poderiam ser. Por isso que na vitrine está o VAR, porque, quando temos jogos com arbitragens eficientes, o VAR não vira vitrine. Acredito que esse é o caminho, nós precisamos melhorar muito a qualidade do árbitro de campo para que a gente fale menos de VAR.

Seneme defende a profissionalização da arbitragem como um caminho para amenizar a pressão e as críticas que a categoria sofre.

– Um árbitro na Conmebol ganha US$ 3.300 num jogo, transforma isso em real (R$ 17,4 mil na cotação atual). Sabe quanto ganha o Raphael Claus, que é um dos melhores árbitros do mundo? Ganha R$ 8 mil para apitar um jogo. É muito, mas quantos Raphael Claus você tem no Brasil? Tem um. Então nós não estamos falando de uma profissão comum. É como comparar o Arrascaeta, que ganha milhões, com o árbitro. Imagine um jogador que ganha milhões que o Raphael Claus apita, e ele ganha R$ 8 mil por jogo.

– O árbitro é uma pessoa comum, faz aniversário, se machuca, às vezes durante o jogo. Dependendo do grau de lesão que ele tem ao longo do jogo, vai terminar sem falar nada para ninguém. O árbitro tem medo, leva o filho à escola, é um ser humano comum, com as suas fortalezas e suas fragilidades. Ele não é um super-homem ou um robô.

Em entrevista de pouco mais de 1h30 na sede da EPTV, afiliada da Globo em São Carlos, Seneme traçou o perfil ideal para um árbitro de excelência, respondeu sobre quem considera o melhor brasileiro da atualidade e analisou os impactos da falta de profissionalização da categoria no ambiente do futebol, entre outros assuntos que você confere na íntegra abaixo.

Ficha técnica:

  • Nome: Wilson Luiz Seneme.
  • Idade: 55 anos (28/08/1970).
  • Profissão: ex-árbitro de futebol.
  • Carreira: Árbitro Federação Paulista de Futebol (1999-2014); Árbitro Fifa (2006-2014); Presidente da Comissão de Arbitragem da Conmebol (2016-2024); Presidente da Comissão de Arbitragem da CBF (2024-2025) e Membro do Comitê de Arbitragem da Fifa.

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ge.globo: Antes de ser árbitro você chegou a ser jogador de futebol profissional?

Wilson Seneme: – Eu fui durante cinco anos. Comecei nas categorias de base, no Paulistinha, em São Carlos. Um dia, jogando contra o Guarani, eles (diretores) me convidar para fazer um teste em Campinas. Fui aprovado e joguei no Guarani durante quatro anos, na base. E tenho uma coisa bem curiosa. Com dois meses de Guarani, a gente ia receber num treinamento a visita do treinador da seleção brasileira sub-17, o Toninho Barroso. Eu arrebentei no treinamento como zagueiro, canhoto, e fui convocado. E isso foi incrível. A partir disso, acreditei mais do que nunca que seria jogador de futebol.

– Depois, joguei pelo Guarani e fui campeão paulista sub-17, aquele sonho de ser jogador estava se concretizando. Eu me tornei jogador profissional, joguei o Paulista da Série A1 pelo Grêmio São-carlense. Só que a carreira não se desenvolveu como eu gostaria. Comecei a jogar em campeonatos da Série A2, depois Série A3, interior do Paraná. Não são vitrines. E você acaba cansando, o salário é pequeno, as condições de vida não são as de um jogador estrela. Então, eu decidi parar de jogar futebol com 24 anos, estava me formando em Educação Física e me tornei professor. Enfim, a necessidade nos leva às mudanças.

Quando foi para a arbitragem?

– O primeiro aspecto foi o financeiro, porque como professor de Educação Física, infelizmente, a gente sabe que não é muito valorizado. Então, complementar o salário aos finais de semana era um objetivo. Fui convidado para apitar um jogo, fiz um par de cartões com cartolina vermelha e amarela, tinha um apito porque era professor e fui para o jogo na Faculdade de Direito de São Carlos. Impressionante como são as coisas, achava que tinha nascido para jogar futebol. É difícil explicar, mas é quando você encontra o que nasceu para fazer.

Como era o comportamento do Seneme jogador com os árbitros?

– Sempre fui uma pessoa com a personalidade forte para jogar. Era zagueiro, por várias vezes fui capitão. Naquela época, o zagueiro era o xerife. Hoje em dia a gente vê os zagueiros tomando carrinho de atacante, atacante deixando a mão na cara dos zagueiros. Naquela época era inconcebível um zagueiro permitir isso. Realmente posso dizer que era um jogador com personalidade forte e pressionava, sim, os árbitros. Isso me ajudou muito.

– O jogador vai ser o que o árbitro permitir, é como numa sala de aula. Se o árbitro souber trazer o jogador para o lado dele e conquistar esse espaço, o jogador vai respeitar. Se ele demonstrar fragilidade, o jogador sente o cheiro no ar da fragilidade. Para ganhar, se faz qualquer coisa, então o jogador vai pressionar, é esse o ambiente que o árbitro encontra e que tem que saber dominar, tem que saber se impor e ser um líder no campo, respeitado.

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A arbitragem te fez mais feliz do que se você tivesse tido longevidade na carreira como jogador profissional?

– Vários amigos quiseram ser jogador e não conseguiram. Você encontra a pessoa, parece que ela está presa no tempo, fica repetindo: “se aquele cara tivesse me ajudado, se tivesse acontecido isso, se eu não tivesse me machucado”. A arbitragem me completou, me preencheu. A arbitragem me mostrou realmente que, no final das contas, independentemente de ser árbitro, dirigente, repórter ou jogador, a gente ama o futebol. Ter me identificado como árbitro e ter conquistado bastante coisa é um sentimento de orgulho muito grande. Não aquele orgulho de você esnobar. Eu me considero um privilegiado.

Se você pudesse avaliar sua carreira como árbitro, em qual prateleira se colocaria?

– O Seneme árbitro foi muito discreto. Não tem um torcedor muito fanático para lembrar algum erro meu que marcou. Minha arbitragem crescia muito em jogos decisivos, que é onde marca. Sabia os jogos que não podia errar. Esse é o nível de pressão. Com essa mentalidade, a discrição foi a minha maior marca. Tudo o que as pessoas dizem dos árbitros, que ele não deve aparecer num jogo, é o que eu mais queria. Era uma festa no meu vestiário após o jogo quando não aparecia. A gente costuma dizer: “deixamos tudo no campo”. E muito feliz, porque termina o jogo, olha para o lado direito, olha para o lado esquerdo, e está tudo bem, essa é a vitória do árbitro. Acredito que marquei nesse sentido, alguns companheiros que até têm mais nome do que eu, mas às vezes têm porque cometeu mais erros marcantes. Eu prefiro não ter tanto nome e ter sido um árbitro discreto.

Você também era discreto com relação a ter contato com os jogadores…

– O futebol mudou muito. Na minha época, a arbitragem era mais fechada do que é hoje. Ao longo de mais de 15 anos de carreira, nunca recebi um telefonema me pedindo alguma coisa, algum benefício. E não conheço amigos meus árbitros que receberam. Eu acho que o árbitro tem que ser considerado um humano, uma pessoa que se relaciona. É óbvio que existem os limites ter uma relação com jogadores, com imprensa, ou mesmo com dirigentes. O árbitro tem que saber conduzir isso e ter ética para não influenciar o desempenho dele no campo. Agora, você se fechar totalmente no mundo comunicativo como é hoje, não cabe mais. A pessoa tem que ser íntegra, honesta, ética e inteligente. Dessa maneira, acredito que pode conviver com todo mundo e ter credibilidade. Na minha época, a gente se fechava totalmente. Eu apitava um jogo em São Paulo, pegava meu carro e rapidinho voltava para São Carlos, onde era o meu refúgio, onde ficava aqui escondidinho esperando o próximo jogo.

O Brasil está produzindo árbitros melhores ou há falta de talentos?

– Vivi isso como gestor. Hoje em dia, o número de jogos aumentou muito. A Libertadores antes era mais curta. A oportunidade de apitar um jogo é muito maior hoje do que antes. Você precisa de mais árbitros. Acredito que os árbitros de hoje apitam melhor do que os árbitros do passado. Eles são mais preparados, você não vê árbitro gordo, são atletas, se cuidam muito, se dedicam no que fazem. A quantidade de cursos que existem hoje é muito maio, quando a gente se encontrava uma vez por ano. Hoje, a proporção é muito maior de encontros entre árbitros, as instruções chegam de uma maneira mais clara, vejo os árbitros tomando decisões muito melhores do que a gente tomava.

– É óbvio, o futebol de hoje exige mais do árbitro do que o futebol de antes. Por quê? Porque tem o VAR, por exemplo, que aí tem o duplo sentido dos aspectos positivos e negativos, a exigência é maior para a arbitragem. Espera-se hoje em dia que o erro determinante de um jogo seja zero. Na minha época, se um árbitro assistente errava um impedimento por dez centímetros, as pessoas diziam: “o cara é humano”. Agora, se a linha do impedimento der dois centímetros de impedido, ninguém aceita.

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Quem é o melhor árbitro brasileiro hoje?

– É muito em função do momento. Para mim, hoje, o melhor é o Ramon Abatti Abel, que é o árbitro que mais identifico a modernidade que nós buscamos, com perfil físico, técnico, disciplinar. Acredito que o ele seja o árbitro que mais se identifica com isso.

Você considera a classe de árbitros unida?

– O árbitro é unido, digamos que é uma união meio que espiritual. Eles não vivem juntos, não trabalham juntos, cada um vive numa cidade. É uma união online. Mas a união que se precisava é física da classe. Mas os interesses individuais estão acima dos interesses coletivos. Um árbitro é um ser carente. Quando vê um caminho onde pode crescer, ele se agarra nele e se torna individualista. Acredito que talvez esse seja um dos benefícios que uma profissionalização possa trazer.

– A profissionalização para o árbitro é um benefício, ótimo, mas e para o futebol? Quem pensa em profissionalizar um árbitro tem que pensar no futebol, não pensar no árbitro. Profissionalizo, pago todos os impostos desse cara e ele continua a mesma pessoa, cometendo os mesmos erros? Qual é o investimento que você está fazendo? Isso tem que ser pensado muito mais estruturalmente para a carreira de um árbitro do que os aspectos de benefícios e segurança. Não vejo em nenhuma parte do mundo o modelo ideal de um árbitro profissional.

– A gente vê os centros de desenvolvimento do futebol serem inaugurados no Norte e no Nordeste, mas onde estão os centros de desenvolvimento da arbitragem? Qual a diferença de um policial comum na rua e um policial de elite? É a capacitação e o treinamento constante, não é diferente para o árbitro. O jogador treina de segunda a sábado e joga no domingo. O árbitro treina sozinho no parque e vai para o jogo no domingo. Fora que ele teve que trabalhar, ser advogado, professor, gerente de banco. Não é essa profissionalização que a gente quer. A gente quer a efetiva, nem que seja para um grupo de árbitros.

– A Inglaterra tem uma categoria de árbitros profissionais, que são os que trabalham na Premier League. Criar isso em princípio é fundamental. Você não vai conseguir para todos? Não, mas ter um grupo que seja profissional e que possa ir agregando ao longo do tempo. Foi a proposta que a gente fez quando cheguei à CBF. Esse era o plano que infelizmente não consegui colocar em prática.

Qual seria a sua ideia de plano perfeito para a profissão?

– Foi muito baseado no que a gente conseguiu fazer na Conmebol. Eu cheguei na Conmebol em 2016, no Fifa Gate, no olho do furacão, na terra arrasada. Todos os dirigentes da América do Sul presos, todos os dirigentes da Fifa presos. Não tinha nada, éramos eu e a minha secretária. Nós implementamos o VAR na Conmebol. E olha que implementar num continente é diferente de um país, porque você tem as fronteiras, cada país tem a sua sistemática de telecomunicação. Criamos as pré-temporadas, intertemporadas, curso de jovens árbitros, fizemos o CETA, que é um centro de referência na América do Sul. A Argentina tem um tem um centro de treinamentos para árbitros na sede da AFA, e nós não temos aqui na CBF.

– No curto prazo, treinamentos, concentrações, pré-temporadas, intertemporadas, se aproximar dos árbitros, ter o controle mais próximo deles. No médio prazo, centro de treinamento e regularidade nos treinamentos. No longo prazo, profissionalização, porque, se eu tenho os outros, tenho que pensar em pagar direitos, impostos. Isso não é algo tão simples, porque passa por Congresso e Senado, por aprovações de leis. Mas, se você tem toda essa estrutura, profissionalizar depois é um detalhe. Agora, se você não tem nada e quer profissionalizar, sinceramente, é jogar a sujeira para debaixo do tapete. Vai parecer que está maravilhoso, o castelo vai ser de areia.

Por que isso não saiu do papel?

– É importante dizer que não tenho nenhuma crítica profunda contra ninguém. A arbitragem na Conmebol tem uma estrutura que a protege. Por quê? Porque é importante, a política do futebol não pode penetrar na arbitragem. Infelizmente, no nosso futebol, a arbitragem é muito utilizada em questões políticas. Você é de determinado clube ou federação e não está bem com a CBF por causa do regulamento, aí o árbitro comete um pequeno erro. Você faz um estardalhaço em cima disso. E quem vai perder com isso? O próprio futebol, porque você fragiliza o árbitro dentro do campo. Se conseguir blindar a arbitragem de uma maneira mais efetiva, acredito que os árbitros vão se sentir mais seguros e vão render muito mais.

– Quanto mais pressão política vem para dentro da arbitragem, mais você vai ser prejudicado. Quando falo a questão política, não estou falando que uma pessoa liga para isso, outro para aquilo. É transformar um ambiente que não é político em político. Eu me sentia assim, porque sou uma pessoa absolutamente técnica, esperava que tivesse espaço técnico. E não foi verdade, tanto é que eu saí antes do meu contrato terminar. Eu tinha um contrato de quatro anos, tinha aprovado um projeto que depois de quatro anos teríamos o centro de treinamento e a profissionalização da arbitragem. No segundo ano me cortaram todas as verbas. Basta saber o porquê, que até hoje não sei. Por que cortaram todas as verbas? Por que os árbitros estão errando? Quando eles não erraram?

– Vai tempo para colher os frutos. Se você é um gestor que não tem a capacidade de avaliar isso, essa foi minha grande decepção na CBF. A gente vê hoje, com a nova comissão, um outro ambiente. Uma nova gestão, os árbitros mais presentes, treinando, voltou o investimento. Mas voltou por quê? Por que a revista falou que cortou? Aí que fica a questão. Espero que seja realmente para a arbitragem seguir no caminho que ela tem que seguir.

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Talvez você precise ser mais político do que técnico pra estar ocupando o cargo de gestão no comando da arbitragem, seja no Brasil ou na América do Sul?

– Acho que se for mais político do que técnico, você vai fragilizar a arbitragem muito mais do que se você for técnico e não político. O que você precisa é que os gestores tenham a visão de que a arbitragem é área técnica e não se toca, não se fala de arbitragem, porque vai haver erro, vai haver acerto. Se você tiver uma pessoa mais política do que técnica, sabe com quem você vai perder a credibilidade? Com o árbitro. E sabe o que acontece com um time de futebol quando o treinador perde o time? Ele cai. Então é uma encruzilhada.

O árbitro é remunerado da maneira como deveria ou ainda ganha pouco?

– Um árbitro na Conmebol ganha US$ 3.300 num jogo, transforma isso em real (R$ 17,4 mil na cotação atual). Sabe quanto ganha o Raphael Claus, que é um dos melhores árbitros do mundo? Ganha R$ 8 mil para apitar um jogo. É muito, mas quantos Raphael Claus você tem no Brasil? Tem um. Então nós não estamos falando de uma profissão comum. É como comparar o Arrascaeta, que ganha milhões, com o árbitro. Imagine um jogador que ganha milhões que o Raphael Claus apita, e ele ganha R$ 8 mil por jogo.

– É um fator extremamente importante a boa remuneração, porque ela diminui pressão. Você entrar em campo preocupado com a conta que tem para pagar é uma preocupação a mais para quem já sofre muita pressão. A CBF pagava R$ 8 mil para apitar a final da Copa do Brasil. A gente conseguiu em dois anos que ele ganhasse R$ 20 mil para apitar a final da Copa do Brasil. E não me vanglorio disso, porque é pouco. Um clube que ganha a Copa do Brasil fatura R$ 70 milhões. O árbitro ganha R$ 20 mil. Se ele não marcar o pênalti, o clube não vai ganhar R$ 70 milhões. A gente não pode só lembrar do árbitro nas horas ruins. Dez anos atrás, se falasse que o árbitro iria poder olhar uma jogada e mudar a decisão dele, você falaria que eu estou louco. Acredito que o futuro da arbitragem não está na mão das instituições que comandam o futebol, está na mão de empresas privadas.

Você é a favor dos árbitros darem entrevistas pós-jogo?

– Eu sou totalmente a favor de humanizar o árbitro e explicar seus erros e acertos. Fazem isso com os técnicos, coitados deles, a pressão que é sentar ali e ter que explicar, falar, não é verdade? Por que o árbitro não pode sofrer essa pressão? Pode sim, desde que ele esteja preparado para esse ambiente.

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Mas por que isso ainda não acontece?

– Porque acho que o sistema é falido. O sistema que organiza a arbitragem comprovadamente não deu certo. Empresas exclusivas de arbitragem têm que surgir para que isso saia da mão, porque é um fardo. A arbitragem é um fardo que os dirigentes de federações carregam, não sabem lidar com isso, não conseguem. Na verdade, eles nem querem. É o mal necessário. É um fardo que não pode estar mais na mão de pessoas que não conseguem trabalhar da maneira que deveria.

Foi a partir disso que você começou a fazer vídeos na CBF analisando os erros e explicando as marcações dos árbitros depois de cada rodada?

– Eu trabalhava com a comunicação da CBF na época, que era o Rodrigo Paiva. A gente abraçou essa coisa de abrir as portas e explicar. Eu acelerei o meu desgaste como presidente de comissão, o meu desgaste público. Mas sabia que isso podia acontecer, a minha intenção sempre foi ajudar, esclarecer, abrir um pouco a mente dos outros segmentos do futebol. Os árbitros são seres carentes, gostam que você passe a mão na cabeça deles. Ninguém gosta da gente (árbitro) e quem deveria gostar vai lá e fala alguma coisa. As coisas são como elas são, não é algo que você está ali falando pejorativamente.

Por que o árbitro é visto quase como um inimigo do futebol e como ele se vê diante disso?

– O que o brasileiro pensa da arbitragem brasileira é o que o argentino pensa da arbitragem argentina. Você nunca escutou que o brasileiro só vê o que passa aqui no Brasil? O brasileiro só se preocupa com o que está acontecendo aqui dentro, porque a gente vê muita comparação à arbitragem europeia. Esses dias eu vi um dirigente falando: “a gente vai tentar evoluir para chegar igual à arbitragem europeia”. Nós já somos iguais à arbitragem europeia. Quem apitou a final da última Copa América? Um árbitro brasileiro. Quem apitou na Rússia a final da Copa do Mundo? Um sul-americano (o argentino Néstor Pitana). Acredito que tem muita coisa para melhorar, mas os erros que acontecem aqui acontecem em qualquer parte do mundo.

– Essas coisas que aconteceram de cartões amarelos vendidos, cartões vermelhos vendidos, não falaram de um árbitro. E quem falou, jogou palavras ao vento para tentar buscar alguma coisa, mas não se comprovou nada contra nenhum árbitro de futebol. E eu estava no olho do furacão nessa época da CBF, fui ao Senado várias vezes sem nenhum medo de falar o que tinha para falar. É uma categoria que tem muito a crescer, mas que tem muito orgulho dessa capacidade de ser honesto, acho que isso é o principal para um árbitro de futebol. Erro e acerto vão ter no Brasil e vai ter em qualquer parte do mundo.

Falta um olhar mais humano para os árbitros?

– O árbitro é uma pessoa comum, faz aniversário, se machuca, às vezes durante o jogo. Dependendo do grau de lesão que ele tem ao longo do jogo, vai terminar sem falar nada para ninguém. O árbitro tem medo, leva o filho à escola, é um ser humano comum, com as suas fortalezas e suas fragilidades. Ele não é um super-homem ou um robô.

– Acredito que as pessoas deveriam conviver um pouco melhor com o erro do árbitro, do mesmo jeito que as pessoas convivem com o erro do craque, que treinou o pênalti exaustivamente ao longo da semana. Acho que esse mesmo torcedor poderia xingar, falar, desabafar contra o árbitro, mas, caramba, ele é um ser humano. Acho que falta um pouco isso, essa aceitação de que o árbitro é sujeito a erros.

A tecnologia se tornou muleta para alguns árbitros?

– O VAR chegou para uma geração de árbitros que não estava preparada para ela, que era reticente, que queria seguir como era. Era um orgulho ferido, toda vez que um VAR chamava, o árbitro ficava maluco. Não gostava, era como se mexesse com o orgulho dele uma mudança de decisão. Por quê? Porque é verdadeiro, o árbitro era o senhor das suas decisões. Aí veio o VAR dizendo que você está errado. Isso mexeu muito com os árbitros, foi um processo muito difícil para aceitar. E continua sendo. O que aconteceu é que, na mudança de geração, veio uma geração já adaptada à ferramenta. Hoje, os cursos de arbitragem já têm uma certa estrutura para começar com o VAR. Então, é uma geração mais adaptada.

– Hoje em dia, se um árbitro está numa jogada e alguém passa na frente dele ou não conseguiu fazer a leitura, ele sabe que alguém vai chamar para poder salvar. Essa é a batalha da Fifa. Hoje nos seminários a Fifa não usa a ferramenta nos treinamentos. Por quê? Para eles avaliarem o árbitro como ele é, com as suas decisões, para não perder a característica de tomar decisões. É uma preocupação da Fifa para o próximo Mundial.

– O VAR não é uma ferramenta do árbitro. O VAR é uma ferramenta para os clubes. Ele faz justiça para o resultado do jogo, o resultado do jogo é dos clubes. Então toda vez que usa o VAR, diminui a credibilidade do árbitro. Pode ser uma jogada fácil, pode ser uma jogada difícil, mexe com o jogo, mexe com o controle e a credibilidade do árbitro. Preparar árbitros para que saibam confirmar situações através do VAR, esse é o árbitro que a gente visualiza nessa nova geração. E não podemos ter gestores de arbitragem que facilitem a vida do árbitro em função da ferramenta. Ou seja, me preocupo mais em capacitar a equipe de VAR do que a equipe de árbitro. Isso nunca pode ocorrer.

Qual é o grande problema do VAR hoje?

– É treinamento. Meu filho é o craque no videogame. Eu fico olhando para a mão dele, como ele move o botão. Por que ele faz isso bem? Porque faz todo dia. Como você quer que um profissional sentado na frente de monitores e outro lá no campo trabalhem em equipe de uma maneira harmônica se não treinam constantemente? É o treinamento que vai fazer essa melhora.

Os jogadores no Brasil possuem um comportamento que atrapalha a arbitragem?

– É um fato, temos vários motivos para que isso aconteça. Tem um aspecto cultural e educacional que transcende ao futebol. A educação europeia é melhor do que a brasileira. Você vê um jogador europeu, ele reclama e cinco segundos depois se acalma e sai de perto. O jogador brasileiro reclama até quando sabe que o árbitro está certo. É triste. É lamentável. Eu vejo pouca gente criticando o jogador que faz isso, o dirigente que permite, o técnico que fala para o jogador fazer isso. E vejo muita gente criticando o árbitro que deixa o jogador fazer isso. E essa ordem tem que ser invertida. O árbitro tem sim que melhorar muito. O árbitro fala demais e se fragiliza. Toda vez que fala, você permite que alguém fale com você, essa distância é água e óleo. Elas não vão se misturar. Você vai ser o árbitro, mantenha a distância, o respeito e a educação. E se respeite, queira ser respeitado. Fale pouco.

Abre Aspas: Seneme diz que falta olhar humanizado para os árbitros no Brasil

Por que o critério varia tanto de árbitro para árbitro e acaba muitas vezes até confrontando com a própria regra?

– Você acha que qual porcentagem da população brasileira que gosta de futebol conhece as regras e as interpretações que a Fifa manda o árbitro interpretar? Pouquíssimo. Como essas pessoas querem falar de critério se elas não sabem qual é o critério que a Fifa manda o árbitro aplicar? Por outro lado, é uma crítica para os árbitros e é uma crítica de 90% de quem gosta de futebol. Esse árbitro não sabe nada de futebol, ele sabe de regra, mas não sabe de futebol. Então essa relação é uma relação de choque de alguém que não sabe de regra contra alguém que não sabe de futebol. Na minha visão, não as regras escritas, as regras interpretadas têm que ser democratizadas. Fala-se pouco de regras de futebol, de interpretação, de critérios. Uma jogada nunca vai ser igual a outra. Elas podem ser similares, iguais elas nunca serão. Quantos erros de pedir critérios eu vi ao longo desses anos de gente que queria o mesmo critério de coisas diferentes. Então me parece que nós precisamos democratizar mais a arbitragem.

– Nós precisamos que a população que gosta de futebol entenda mais quais são os critérios que o árbitro deve aplicar. Precisamos de mais ex-jogadores que queiram ser árbitros. Falar a linguagem do jogo é o mais importante para um árbitro de futebol. Ele tem que ter noção e discernimento se as decisões que ele está tomando estão agradando ou não está agradando. E às vezes a gente vê que ele não percebe. Sabe quando não está conectado? Parece que ele vive num mundo, e o futebol está em outro. Ele precisa se conectar com o futebol. Você precisa se autoavaliar durante um jogo. Acredito que é dessa maneira que a gente vai conseguir melhorar essa questão dos critérios. É muito simples falar que o árbitro não tem critério. E você sabe qual é o critério que ele deveria ter?

Como funciona o critério de escala de arbitragem?

– O sorteio já não existe mais. Na verdade, o sorteio existiu no pós-caso da Máfia do Apito, que foi um período de vários anos para dar essa, digamos, neutralidade. Os árbitros são escalados. É como escalar um jogador. Você vai olhar a grandiosidade do clube A e do clube B, porque não adianta falar que todos os clubes são iguais. Não são. Ninguém está dizendo que o clube B não pode ganhar do clube A. São coisas diferentes, mas tem o clube A que é maior que o clube B, isso é um fato.

– A realidade é que há clubes que têm jogadores com mais qualidades e outros que têm menos. Tem clube que joga de uma maneira como local, outro que joga de outra maneira. Tem um ambiente de um estádio, com um gramado ruim, ou um momento que está um clube, na zona de rebaixamento ou não. Aí você cruza todos esses dados do campeonato e dos clubes com o perfil do árbitro. Perfil disciplinar, técnico, físico, sob pressão, social, qual é o perfil da pessoa socialmente. Tudo isso você cruza para tentar identificar o mais próximo possível o tipo do jogo para o perfil do árbitro.

Existe pressão e a interferência?

– Zero. No meu caso, só posso responder por mim. Eu respondo por mim do mesmo jeito que nunca recebi um telefonema para ajudar alguém quando fui árbitro, nunca atendi um telefonema para ser pressionado por alguém ou por alguma coisa. Nunca.

Você se sente frustrado pela demissão da CBF?

– Estava empregado na Conmebol, o meu destaque na Conmebol foi que despertou o interesse de me convidarem para vir para a CBF. E apresentei o meu projeto, as condições e não sabia, e aí eu aprendi, que tem que assinar. Agora aprendi, porque esperava que a palavra servisse, ser interrompido nesse meio do caminho foi algo frustrante, sim. Foi algo decepcionante. E que, enfim, estou trabalhando para tentar ainda assimilar essa situação. Acredito que a arbitragem tem que ser democratizada, não dá para uma instituição querer que todo mundo conheça os critérios da arbitragem. Ela precisa de ajuda, precisa de instituições privadas que possam auxiliar seriamente a propagar e divulgar a interpretação das regras do jogo.

Isso te frustrou mais do que não apitar em uma Copa do Mundo?

– A Copa do Mundo foi uma batalha, operei o meu joelho três vezes antes de entrar na Fifa. E chegou a ter médico que falou que ia ter que colocar prótese, não conseguia apitar mais. Ter chegado à Fifa e ter sido candidato à Copa do Mundo até um ano antes, isso para mim foi uma glória. Não ficou nada para trás, sabia que era difícil na questão física. Foi um orgulho as minhas conquistas. E eu ter podido, em duas Copas do Mundo, ter ajudado a Comissão da Arbitragem a organizar, isso é um orgulho muito maior do que qualquer decepção que eu possa ter tido fora essa.

Em algum momento você saiu do papel de árbitro para o de fã de futebol?

– Impossível, fã impossível. Eu joguei, apitei jogo de quem jogou comigo. Eu joguei no União São João de Araras na categoria de base, era o quarto zagueiro, quem jogava no lateral esquerda era o Roberto Carlos. E quando ele volta da Europa, fui apitar o jogo Corinthians x Palmeiras, e o lateral do Corinthians era o Roberto Carlos. Com nove minutos expulsei o Roberto Carlos com o carrinho, esse é o maior exemplo que posso te dar de que não tem essa de ídolo. Eu posso até admirá-lo, é a mesma pergunta de: “como é que você consegue fazer um gol no clube que te revelou?”. Vou sair na cara do gol e chutar longe? Admiro o Neymar, o Romário, o Ronaldo, apitei jogos deles.

“Uma coisa que aprendi: quando você apita um jogo de um grande jogador, proteja o craque. Não beneficie, mas o proteja. Todo mundo que vai querer caçá-lo. Se consegue protegê-lo e não beneficiá-lo, você está beneficiando o futebol”

— Wilson Seneme.

Alguma pergunta que não tenha sido feito e que gostaria que tivesse sido feita?

– Cara, nunca tinha feito uma entrevista na minha vida, 40 anos de futebol, nunca tinha feito uma entrevista tão completa como essa, nunca. Vocês foram meus psicólogos aqui.

Pela primeira vez o árbitro não foi um ser carente, então?

– Boa. Pela primeira vez não me senti carente, é verdade. Me senti realmente… Nossa, cara, desabafei. Muito obrigado.

Fonte: ge